domingo, 28 de setembro de 2008

Carta de despedida de Olga Benário



Queridos:

Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda a minha vontade. Por isso, não posso pensar nas coisas que me torturam o coração, que são mais caras que a minha própria vida. E por isso me despeço de vocês agora. É totalmente impossível para mim imaginar, filha querida, que não voltarei a ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus braços ansiosos.
Quisera poder pentear-te, fazer-te as tranças - ah, não, elas foram cortadas. Mas te fica melhor o cabelo solto, um pouco desalinhado. Antes de tudo, vou fazer-te forte. Deves andar de sandálias ou descalça, correr ao ar livre comigo. Sua avó, em princípio, não estará muito bem. Deves respeitá-la e querê-la por toda a tua vida, como teu pai e eu fazemos. Todas as manhãs faremos ginástica... Vês? Já volto a sonhar, como tantas noites, e esqueço que esta é a minha carta de despedida. E agora, quando penso nisto de novo, a idéia de que nunca mais poderei estreitar teu corpinho cálido é para mim como a morte.

Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-me-ei, mesmo que não pudesse ter-te muito próximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem. E queria ver teu sorriso. Quero-os a ambos, tanto, tanto. E estou tão agradecida à vida, por ela haver-me dado ambos. Mas o que eu gostaria era de poder viver um dia feliz, os três juntos, como milhares de vezes imaginei. Será possível que nunca verei o quanto orgulhoso e feliz t sentes por nossa filha?

Querida Anita, meu querido marido, meu Garoto: choro debaixo das mantas para que ninguém me ouça, pois parece que hoje as forças não conseguem alcançar-me para suportar algo tão terrível. É precisamente por isso que esforço-me para despedir-me de vocês agora, para não ter que fazê-lo nas últimas e difíceis horas. Depois desta noite, quero viver para este futuro tão breve que me resta. De ti aprendi, querido, o quanto significa a força de vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas. Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão por que se envergonhar de mim. Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte. Beijo-os pela última vez.

Olga


*Carta escrita à lápis, no dia 17 de outubro de 1936. Olga Benário morre em uma câmara de gás em 1942. A última carta de olga foi dirigida ao líder comunista brasileiro Luis Carlos Prestes. Foi escrita em Ravensbrück, na noite da viagem que a levaria а morte em Bernburg.*

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Mario, em tela de Lasar Segall

Está se dando no Brasil um movimento em torno da palavra Comunismo que é dum ridículo perfeitamente idiota. Antes de mais nada, se me referi à "palavra" Comunismo, é porque, já falei outro dia, ninguém sabe o que ela é. Às vezes a gente fica até sarapantado vendo indivíduos que parecem cultos, acobertarem com essa palavra as noções mais ínfimas. É vergonhoso mas incontestável que pra uma grande maioria de indivíduos até bem alfabetizados, Comunismo chega a ser isso da gente se aproximar dum indivíduo e ir falando: - Me dê sua gravata que pretendo ficar com ela.

Comunismo pra brasileiro é uma espécie de assombração medonha. Brasileiro nem bem escuta a palavra, nem quer saber o que é, fica danado. Bom, é verdade que danação de brasileiro tem cana-de-açúcar pra adoçar, baunilha pra perfumar e no fim um sorvo de caninha de alambique de barro, bem boa pra rebater: acaba tudo em dança. Mas nem por isso deixa de ser dum ridículo cansativo esse apavorante pânico que tomou o Brasil por ordem da Inglaterra.

Não pensem agora que amolado com esse ridículo a que nos estamos sujeitando, por ordem da Inglaterra, vou definir e explicar neste artiguete o que seja Comunismo. Não posso e não é possível, não só porque a coisa é complexa por si mesma como porque essa mesma complexidade permite que na prática o Comunismo possa se apresentar numa infinidade de realizações diferentes. A gente poderá atingir uma noção vaga e apenas. Da mesma forma que a respeito da palavra "república". Ninguém mais terá a coragem de dizer que República signifique de fato administração pelo povo da coisa do povo. Isso seria aliás muito mais o conceito de Comunismo que de República. Essa tem sido ou tem pretendido ser a aplicação, pelo menos regional, do Comunismo na Rússia. As palavras "comunismo" e "república" são das tais ingenuidades, comuns à inteligência humana, pelas quais nós sossegamos a perplexidade inenarrável da nossa precariedade de conhecimento, batizando as coisas ignoradas que intuímos vagamente, com uma palavra. A vagueza, a ignorância não mudaram nada em nós, porém a palavra salvou-nos tudo: criou-se um Demônio novo, e a gente se bota a exorcizá-lo ou propiciá-lo, conforme se ele representa um Princípio Bom ou um Princípio Ruim.

No fundo e popularmente, o que nós somos, somos eternamente uns homens da caverna. Primários e apavorados.

A República é uma noção vaguíssima. Na prática tem havido centenas de aplicações diferentes dessa noção; e assim como teve aplicações aristocratíssimas dela, impérios há, como o inglês, em que na prática se goza de muitíssimas prerrogativas republicanas. E o mesmo há de se dar com o Comunismo, que terá certamente centenas de manifestações diferentes. Jean Richard Bloch chegou a demonstrar que muitas ilações de princípio comunista estavam em prática no próprio antro infamíssimo do capitalismo, os Estados Unidos. Mais que na Rússia.

E agora a Rússia entra em cena. O que nos leva ao pavor que temos pelo Comunismo é a identificação deste com a Rússia, por ser esta a primeira e a única nação que o aplicou verbalmente até agora. Antes de mais nada, a verdade verdadeira é que ninguém não sabe direito o que é a Rússia contemporânea nem o que está sucedendo por lá. Uma circunstância fatal do regime político internacional em que estamos vivendo. Os países capitalistas têm feito tudo não só pra ocultar da humanidade a Rússia verdadeira, como inda têm feito tudo pra prejudicá-la até internamente. Por seu lado a Rússia havia de reagir, está claro. Se defende. Os outros lhe exageram as mazelas. Ela seqüestra as mazelas que tem. E essas manipulações da verdade provém duma confusão pueril dos conceitos de governo e de felicidade. Um sistema de governo jamais dará felicidades pra ninguém não. A felicidade é uma aquisição puramente individual. Um governo poderá quando muito organizar um relativo bem-estar exterior e só isso a gente pode exigir dele. Ora se a Rússia geme de muitos malestares (e isso depende em parte enorme da situação internacional em que a colocaram os outros países) também é incontestável que esses malestares não são piores que os da Alemanha, que os da Índia, que os do Brasil uochintoniano. E goza de muitos bem-estares também.

Mas Deus me livre de negar os horrores que a Rússia sofreu e sofre na implantação do regime novo. A bobagem é a gente identificar esses horrores, que foram especificamente europeus, psicologicamente russos, com o Comunismo. São horrores russos, não são horrores comunistas. Da mesma forma que o afogamento de Nantes foi um horror francês e não um horror republicano. E São Bartolomeu, e a Inquisição ibérica, e a implantação do Protestantismo na Inglaterra. De tudo isso há que culpar os homens e não as idéias.

Está claro que, como foi dito desde o início destas colaborações, o Diário Nacional não esposa em absoluto as opiniões dos seus colaboradores literários e eu estou fazendo literatura. Falei sobre Comunismo porque me arde ver o susto brasileiro ante esse monstro de palco, inventado pela malvadeza de uns e a ignorância de outros.

E aliás basta a gente imaginar no que é a psicologia brasileira pra ficar certo que jamais não teríamos aqui a ferocia bolchevista. Esta Revolução gloriosa, já se falou, foi uma revolução alegre. Tipos absolutamente criminosos do regime passado estão aí passeando na rua. Os outros, e alguns até difíceis da gente criminar nas suas pessoas, como Antônio Prado Júnior e Mangabeira, estão navegando as ondas do verde mar. Estou imaginando um Comunismo implantado aqui... Depois de serem queimadas de novo todas as casas de Bicho, os "Soviets" brasileiros, como no delicioso poema de Murilo Mendes, mandavam mil contos de presente pros órfãos turcos. Depois davam um grande baile.

Mário de Andrade
Diário Nacional. Domingo, 30 de novembro de 1930.

Liberdade

Estou com sono, mas com angústias que não me deixam dormir tranquilamente. Eu fico pensando porque eu vivo a procurar a liberdade e não a encontro. E no mundo sempre tem um grupo social, um produto pra consumo, um programa de TV, uma ilusão qualquer, ou uma instituição qualquer que te dizem que lá você será livre e todos os seus problemas serão resolvidos. É possível que você se sinta livre no começo, mas uma hora você verá que só trocou de jaula. É duro admitir, mas qualquer coisa que envolva seres humanos, nunca, absolutamente nunca, será livre para aquele que procura a verdadeira liberdade. Mesmo que eu não saiba ao certo a dimensão na verdadeira liberdade. Eu só sei que a verdadeira liberdade não é a casa da mãe-joana, claro. Não é uma anarquia completa. Mas também sei, não pela razão, mas pelo coração, que a liberdade não trás angústias, e isso já é uma boa pista.


Quero encontrar a liberdade sem cair em armadilhas da próxima vez, e me refiro à armadilhas dos homens, seres imperfeitos e difíceis de tolerar. Estou presa à várias coisas: presa ao que as pessoas querem de mim, presa ao que eu quero das pessoas, presa ao desejo de agradar a todos e agradar a mim também, presa às lembranças do que passou e que eu desejo, por vezes, tão intensamente, que voltem a existir no presente; presa ao estranho amor que ainda sinto por aqueles que não merecem e nem mais fazem parte de mim, mas que por vezes eu desejo, tão estranhamente, que voltem fazer. Estou presa à saudade do que já vivi, e estou presa, tão profundamente, à saudade do que ainda está por vir. Como eu desejo o que ainda vai chegar, como!


É a estranha ilusão de que, quando chegar ao que está por chegar, chagarei enfim a ser feliz de verdade, a viver de verdade, a resolver todos os meus problemas de verdade. É como se o agora fosse apenas um treino da grande estréia e, enquanto ela não chega, e quanto mais ela demora a vir, mais a minha mente procura as coisas boas do passado para se apoiar e, patologicamente, transforma o que era ruim em lembrança boa, numa estranha estratégia de auto-defesa em me manter viva sem entrar em colapso existencial. Na verdade eu desejaria que me deixassem desejar em paz. Ou o meu passado ou o meu futuro. Essa é a maneira que eu aprendi de viver sem maiores desastres. E venho aprimorando tal técnica cada dia que passa e, conseqüentemente, me protegendo mais e mais.


O desejo do que virá, no fim das contas, é a felicidade, em si. Acho um direito razoável que me compete e acho covardia tentar barrá-lo, sobretudo porque a origem da covardia é perceptível: por não ter coragem de arriscar pelo seu desejo de toda vida, ou por mera hipocrisia quando o outro tenta lhe fazer desistir da tua ousadia para ter mais um companheiro na vidinha medíocre e pequeno-burguesa do senso comum. Mas a questão é simples, não quero mais uma ilusão de liberdade, eu a quero de fato. E tão pouco abro mão de ser alguém pensante. É a velha história de não querer ser encaixotado...


"Sábado, Maio 14, 2005
Para os encaixotados e encaixotadores Meu professor de música um dia já me disse sobre as pessoas ocuparem boa parte do tempo de suas vidas tentando colocar você em uma caixinha. O tamanho da caixinha, a cor, a textura, o enfeite, a estampa, o diâmetro e o lacinho final é escolhido por um só critério: o que mais combina com as necessidades daquele que pretende te encaixotar. É muito simples: Pretendem te encaixotar para melhor satisfazer seus desejos e se você tem a petulância de não se deixar encaixotar, ah, nossa, você está sendo egoísta! E você não pode imaginar o quanto está ferindo o pobre encaixotador, que, no ápice de seu egocentrismo, só queria você moldadinho pra ele. (...) " Trecho de um texto publicado em um antigo blog meu, cuja o link não irei desponibilizar por pura sacanagem.